Contexto Histórico
No extremo ocidental do imenso império Omíada um pequeno aglomerado urbano ganha dimensão e prestígio. Localiza-se no topo de uma colina banhada a sul por um rio de águas calmas e propícias à actividade portuária, que de tão antiga se perde na memória dos tempos. Dizem que nesse passado distante mas ali perto, no monte vizinho do lado do por do sol, se cunhou uma moeda de bronze, que de um lado mostrava uma espiga e um cavalo e, do outro, a palavra CILPES. Esta teria servido para a troca de produtos transportados por povos navegadores trazidos pelo vento levante. Desse velho e contido espaço se transferem agora os seus habitantes, volvidos mais de setecentos anos, para a emergente e promissora madinat Xilb, onde mais recentemente se fixaram também contingentes militares e populações vindas do longínquo oriente.
O governador da província onde se insere, de nome Ocsónoba, cuja capital é uma cidade muito antiga da mesma denominação, revoltou-se contra o poder Omíada sediado em Córdova e transferiu a capital deste território para a promissora Xilb. A sua posição estratégica, a proximidade ao mar através do Arade, os terrenos férteis que ladeiam o rio e os recursos florestais que a serra, a norte, lhe concede, são condições excelentes para se defender e prosperar.
Yahyâ Ibn Bakr Ibn Zadlaf, o governador, era um muçulmano de recente conversão, que alinhava com outros revoltosos muladíes desgostados com o tratamento desigual do poder Omíada face aos muçulmanos de longa data, que se haviam demarcado do poder de Córdova. Mas agora, que o emir independente Abdallah assumiu a liderança, é reconhecido como legitimo o poder de Yahyâ sobre a província de Ocsónoba, o que permite que este território goze de alguma paz. Esta acalmia é aproveitada pelo seu governador para organizar a cidade, erguer as suas defesas e a mesquita maior.
No topo da colina inicia-se a construção das muralhas da alcáçova para protecção do palácio dos Banu Yahyâ Bakr e aquartelamento do seu pequeno contingente militar. A meio da encosta toma lugar a edificação das muralhas que protegiam as habitações das muitas famílias que aqui se vão instalando a um ritmo acelerado. Ao seu interior acede-se por uma porta posicionada a sul, ao lado da qual se situa a maqbara. Um pouco abaixo da alcáçova e em lugar bem destacado na paisagem Yahyâ ordenou a construção de uma grande mesquita, correctamente orientada para a caaba, com um alto minarete para se chamar para a oração e, ainda, espaço para funcionamento da madraza, onde todos deverão dirigir-se para aprender a palavra do profeta Maomé.
A construção da mesquita é obra que assumirá pessoalmente, pois a sua condição de líder da comunidade e chefe espiritual dá-lhe a obrigação moral de oferecer aos muçulmanos um espaço de oração comum, do mesmo modo que se tornará no emblema do seu poder sobre a cidade e o vasto território desta dependente.
Para assinalar este acto pio o governador já encomendou ao lapicida a gravação de uma lápide comemorativa que figurará sobre a porta da mesquita. Com esta acção piedosa Yahyâ mostra a sua religiosidade sincera e espera, por tal, ser recompensado com a abertura das portas do céu e o acesso ao merecido paraíso, a sua morada eterna.
E, porque as obras estão prestes a concluir-se e a grande mesquita a abrir portas aos crentes, o venerado vizir local apressa-se a nomear os oficiais da mesquita para, assim, se proceder à sua consagração: o Íman e o Muezzin, que diariamente procederão aos ofícios religiosos e chamarão para a oração, o Jatîb, que se encarregará do sermão de Sexta-feira, o Muftí e o Al-Faqhí que interpretarão e aplicarão a lei islâmica e, os ulemas, sábios a quem incumbirá a transmissão de todos os saberes.
Com a construção das muralhas estará garantida a segurança da comunidade tornando-se esta a expressão visível de um estado forte e, com a construção da mesquita, ficará bem patente a manifestação simbólica da nova religião, nos primórdios da islamização de um espaço que se tornará num dos maiores centros políticos e culturais do Gharb al-Andalus, Xilb.
GLOSSÁRIO
Omíadas = dinastia de emires que dirigiu o império muçulmano entre 661 e 750, estabeleceram-se em Córdova e dominaram a Península Ibérica entre 756 e 1031 | CILPES = nome de Silves na idade do Ferro (?) | Madinat = cidade | Xilb = Silves em época islâmica| Ocsónoba = Faro em época islâmica | Zadlaf = Zadulfo, nome visigodo arabizado| Muladies = cristãos convertidos ao islamismo| Emir = príncipe ou chefe de estado, título de origem árabe | Abdallah = 6º emir omíada (888-912) | Banu = família | Maqbara = necrópole, cemitério | Caaba = edifício de forma cubica situado no centro da mesquita Al-Haram de Meca, considerado o local mais sagrado do islão | Madraza = escola para ensino do Corão | Maomé = profeta que transmitiu a mensagem divina | Vizir = governante | Gharb al-Andalus = Território mais ocidental do império Omíada, todo o Portugal muçulmano e parte da actual Andaluzia.
*Esta narrativa é baseada em factos históricos, que nos foram transmitidos pelas fontes históricas e pela investigação arqueológica, mas alguns aspectos são meramente conjecturais embora plausíveis.